domingo, 15 de agosto de 2010

Teatro e sentido


Roberto Mallet

A crise atravessada pelo ocidente contemporâneo, que por certo se reflete também no teatro, é uma crise de sentido, como já afirmou com todas as letras o psiquiatra vienense Viktor Frankl.  No teatro contemporâneo essa ausência de sentido resulta – por sua simples ausência - em uma preocupação excessiva com os aspectos técnicos e performáticos da arte teatral.
No século passado Baudelaire já detectava na arte moderna uma obsessão com a forma e a despreocupação com o sentido:  "O gosto imoderado pela forma leva a desordens monstruosas e desconhecidas.  Absorvidas pela paixão feroz do belo, do singular, do encantador, do pitoresco, pois nisso tudo há graus, as noções do justo e do verdadeiro desaparecem.  A paixão frenética pela arte é um cancro que devora o resto; e, como a ausência clara do justo e do verdadeiro na arte equivale à ausência da arte, o homem todo se desvanece; a especialização excessiva de uma faculdade leva ao nada." (1)
Ciência e filosofia.  Técnica e sentido.  O que Baudelaire pede aqui ao artista é que ele tenha, ao lado da mestria dos meios técnicos e poéticos para a construção da obra, uma visão.  Visão no sentido de olhar inteligente, intuição intelectual.
A função da arte é iluminar.  A palavra Teatro significa "lugar onde se vai para ver"  -  para ver as coisas que estão ocultas, que permanecem veladas na vida cotidiana.
Pindaro, poeta grego do séc. V a.C., conta, em uma de suas odes, o seguinte mito: Quando Zeus fez o universo, chamou todos os deuses para uma festa no Olimpo, onde apresentou-lhes sua obra.  No meio da festa, quando todos já tinham bebido bastante ambrosia, levanta-se alguém e diz:  Está tudo muito bonito, é maravilhoso esse universo, mas tem um problema, não há nenhuma criatura que te louve por essa obra. Porque o homem, esse animal que fizeste, tem um defeito, ele se esquece com muita facilidade."
Há uma bela palestra do Luiz Jean Lauand (2) em que ele comenta esse texto.  Nela ele se pergunta: mas o homem se esquece de tudo?  Não, o homem só se esquece daquilo que é essencial.  O que é periférico, o que não importa, nós lembramos.  Sabemos exatamente quanto temos em nossa conta bancária, a que horas é o encontro que eu marquei com fulano, o que beltrano me disse há sete anos atrás, etc. - mas as coisas essenciais, nós esquecemos.
Voltando à narrativa de Píndaro, Zeus, para solucionar o problema apontado pelo deus olímpico, cria as musas, filhas de Mnemosine, a memória.  A função das musas é exatamente essa: lembrar ao homem dessas coisas essenciais. A obra de arte tem essa função.
E que gênero de coisas o teatro ilumina, onde incide particularmente sua luz?  O foco do teatro está no mar de intenções, condicionamentos, disfarces, auto-enganos, alucinações, paixões...  O foco do teatro está em tudo aquilo que compõe o substrato oculto das ações dos homens.
Parece-me que hoje estamos perdendo isso de vista.  A obra de arte se torna cotidiana, fala de coisas com as quais já estamos em contato constantemente.  Talvez a influência da televisão, da mídia, seja preponderante nisso. A dramaturgia televisiva é uma dramaturgia que só fala daquilo que nós já estamos cansados de saber. Ela nunca me diz nada de essencial, nada de fundamental para minha vida. Kandinski gostava de dizer que a função da obra de arte é tornar visível o invisível.
Eu, como artista, tenho que desenvolver um olhar que me torne capaz de ver esse invisível.  Como é que eu posso tornar visível algo que eu mesmo não estou vendo? O artista é alguém que vê mais, e que por uma necessidade incoercível (mas também num ato de generosidade) constrói uma obra em que as pessoas possam ter uma compreensão, uma intuição análoga à que ele teve.
A obra de arte dirige-se à nossa inteligência através dos sentidos, e portanto o que gera a obra de arte também é um ato da inteligência.  O que é essa inteligência?  É a nossa capacidade de ver algo imediatamente, sem intermediários.  De compreender algo em sua própria essência.  Existe uma espécie de luz que está dentro do homem, e que está no mundo também.  Ela me permite ver e, de acordo com a potência da minha visão, me revela mais ou menos ampla e profundamente o mundo.
Em uma obra de arte o artista, tendo visto alguma coisa, constrói um objeto com uma determinada estrutura que permite que outra pessoa olhe para esse mesmo objeto e tenha uma intuição análoga à que o artista teve antes de criar a obra. É aí que reside sua função reveladora.
Uma vez que existe a visão, que tenha ocorrido uma autêntica intuição, a criação da obra depende apenas de transposição dessa visão para a materialidade própria à cada arte.  Isto é claro sob a condição de que o artista domine os meios técnicos de seu ofício.  É como dizia Clarice Lispector: "Eu nunca tive sequer um problema de expressão.  Meu problema é muito mais grave, é de concepção."
Em síntese, e retomando Baudelaire:
"... toda literatura que se recusa a marchar fraternalmente entre a ciência e a filosofia é uma literatura homicida e suicida." (3)

Notas
(*)  Escrito para o jornal da Associação de Teatro Circo Negro - Teresina (PI).  [volta]
(1)  In "Curiosités esthétiques", cap. "L'école payan", http://www.bibliopolis.fr.  [volta]
(2)  Leia essa palestra aqui.  [volta]
(3)  Op. Cit.  [volta]